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A ambígua e perigosa trilogia da Revolução Francesa

20 de Agosto de 2025

Armando Alexandre dos Santos

Armando Alexandre dos Santos

A ambígua e perigosa trilogia da Revolução Francesa

A trilogia “liberdade, igualdade e fraternidade”, adotada como programa político pela Revolução Francesa, foi inscrita nas armas oficiais da França republicana. Até hoje a adotam como lema inspirador todos os que, de uma forma ou de outra, se consideram herdeiros da mesma Revolução. E, contrariamente ao que se pensa, a Revolução Francesa está muito longe de constituir unanimidade na França e ainda hoje é contestada e criticada por muitos franceses, que rejeitam o lema, como também rejeitam a Marselhesa, não a admitindo como hino nacional.

Se analisarmos a trilogia no seu conjunto, como um todo, constituindo um programa de vida e de organização da sociedade, veremos que se trata de um lema, acima de tudo ambíguo. E também perigoso. Sem negar que cada um dos seus três elementos, isoladamente considerados, comporta, ou pelo menos pode comportar um sentido favorável, os três, tomados conjuntamente, embutem uma perigosa utopia - porque é impossível impor a igualdade entre os homens sem cercear sua liberdade, como também é impossível lhes garantir a plena liberdade, sem que daí decorram desigualdades.

Contribua com qualquer valor para o site "Cristãos Atrevimentos" Quero Doar O lema “liberté, egalité, fraternité” foi, pela primeira vez, usado por Maximilien de Robespierre, o famoso e sanguinário líder revolucionário, num discurso que proferiu na Assembleia Nacional Constituinte em 5 de Dezembro de 1790. Quando se tratava da constituição da Guarda Nacional, discutia-se se todos os cidadãos deviam ser recrutados para ela, ou se o critério de recrutamento devia ser censitário, ou seja, somente os mais ricos deveriam ser convocados. Robespierre defendia que todos, ricos e pobres, deviam ser convocados em armas para defender as ideias e as conquistas revolucionárias.

Note-se que até então, tradicionalmente e desde a Idade Média, sempre se entendeu que o exercício militar era privativo da nobreza. Os nobres não pagavam impostos em dinheiro, mas o pagavam em sangue, tinham o dever de lutar. Era o famoso “impôt du sang”. O plebeu pagava imposto (em dinheiro, ou com parte da sua produção, ou, ainda, trabalhando para o seu suserano em determinados períodos do ano), mas não podia ser convocado para servir militarmente a não ser quando sua própria localidade era invadida; somente nesse caso específico tinha obrigação de ajudar na defesa. Havia, no Antigo Regime, uma distribuição equilibrada de direitos e deveres, fundada na antiga sociedade de ordens, vinda da Idade Média e vaguissimamente inspirada na distribuição de funções da República de Platão.

Com a Revolução Francesa, todos ficaram iguais. Paradoxalmente, a Revolução, pregando a igualdade, começou por tirar do povo um direito e lhe impor um dever: tirou dele o direito de ser defendido pela nobreza, e lhe impôs o dever de lutar e morrer pela nação. Em resumo, a Revolução fez com que os plebeus continuassem a pagar o imposto em dinheiro e passassem a pagar também o do sangue...

Transcrevo, a respeito, trecho de um interessante artigo de dois juristas espanhóis, Atahualpa Fernandez e Marly Fernandez: “Note-se que a fraternidade significou um ideal de emancipação que foi parte do programa político de Robespierre, autor da divisa `liberdade, igualdade, fraternidade´, que, em seu famoso discurso de 5 de Dezembro de 1790, defendendo os direitos do homem e do cidadão contra o sistema censitário que pretendia aplicar-se à Guarda Nacional, apareceu por vez primeira na história universal da humanidade. No projeto de lei alternativo com que Robespierre concluía seu discurso, se determinava que todos os cidadãos maiores de 18 anos - e não somente os ricos - seriam, de direito, inscritos na Guarda Nacional de sua comuna; que esses guardas nacionais seriam as únicas forças armadas empregadas no interior, e não o exército herdado do velho regime; que, em caso de agressão exterior, competiria aos cidadãos em armas, e somente a eles, o defender-se. E que, finalmente, levariam sobre o peito e em seus estandartes estas palavras: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. O deputado Robespierre, que vinha lutando sozinho desde há alguns meses contra a distinção, aprovada em câmara, entre `cidadãos ativos´ (capazes de pagar um censo) e `cidadãos passivos´ (pobres), voltava agora à carga, e nada menos que em um ponto politicamente tão sensível como o caráter de classe da futura Guarda Nacional.” (“Fraternidade e a Boa Sociedade”)

Sinceramente, não entendo como se pode falar em liberdade, em fraternidade e em igualdade no contexto da Revolução Francesa. Como falar em Liberdade numa época em que, aberrando de toda a norma jurídica e de todo o bom senso, se criou a famosa Loi des Suspects (Lei dos suspeitos), segundo a qual bastava alguém ser acusado de ser contrarrevolucionário para tornar-se suspeito de traição contra o povo francês; e bastava tornar-se suspeito para ser condenado à morte? A prova do “crime” era considerada dispensável. Bastava haver uma suspeição e já a cabeça rolava.

Como falar em Fraternidade com tantas dezenas de milhares de mortos na guilhotina, após julgamentos sumaríssimos, e com a população da Vendeia literalmente massacrada num genocídio pavoroso? Michelet escreveu, com razão, que a Revolução Francesa foi um rio de sangue que dividiu a França em duas partes e continuará a dividi-la para todo o sempre, pois a ferida que abriu jamais se cicatrizará.

E como falar em Igualdade se a própria Revolução Francesa manteve a escravidão no Haiti e negou, aos negros haitianos, o direito de voto que, no entanto, considerava direito fundamental de todo homem?

* * *

Na verdade, como disse, é extremamente ambíguo (e também perigoso) o caráter da famosa trilogia adotada como lema inspirador da Revolução Francesa e dos movimentos políticos e ideológicos que, na esteira da mesma Revolução, se vem manifestando nos últimos dois séculos. Essas três palavras tinham, na utilização que delas faziam os primeiros revolucionários, um sentido bem diverso do que geralmente entendemos nós, hoje em dia. Era um sentido amplo, ambíguo, aplicável a seu bel-prazer, conforme suas conveniências políticas e ideológicas. Essa mesma ambiguidade, essa mesma multiplicidade de sentidos, continua ainda hoje sendo utilizado com a mesma latitude.

Curiosamente, esse lema é tão amplo e de contornos tão pouco definidos que serve para todas as situações... Ditadores de direita e de esquerda o utilizam à vontade, sem o menor constrangimento. Políticos também o usam com a maior naturalidade. E quanto mais demagogo, com tanto mais facilidade o usa. Quando fui pesquisar a utilização desse lema nos últimos 30 anos, encontrei-o usado por Fidel Castro, Hugo Chávez, Lula, Cristina Kirchner, Nicolás Maduro e incontáveis outros.

Seguem, entre muitos, alguns exemplos.

Falando em Portugal, no dia 18-10-1998, Fidel Castro assim se exprimiu: “Es decir que todos estamos acercándonos hacia una posibilidad de justicia, y nosotros vamos evolucionando no hacia cosas simples, sencillas o aparentes, vamos evolucionando hacia cosas serias en todos los terrenos, en el terreno teórico, en el terreno práctico y en el terreno económico, pero siempre pensando en una cosa: en un futuro de justicia, sin lo cual no podría sostenerse este mundo, y en un futuro de hermandad, de fraternidad. Esa fraternidad de que tanto se habló cuando la Revolución Francesa: libertad, igualdad y fraternidad, y sinceramente de las tres no quedó prácticamente ninguna. Estamos luchando todavía por los ideales de la Revolución Francesa en los tiempos actuales que son tiempos de hablar de socialismo, pero estamos optimistas” (texto extraído do site oficial do governo cubano, em .http://www.cuba.cu/gobierno/discursos/1998 acesso a 22-2-2010.) Creio ser desnecessária a tradução do castelhano, pois o público luso-brasileiro culto entende, sem dificuldade, textos nesse idioma.

Para o já falecido ditador cubano, pois, que se apresentava como lutador pelos ideais da Revolução Francesa, somente com a justiça futura que ele dizia esperar, haveria, também futuramente, uma irmandade, uma fraternidade. Isso explica seu governo tão pouco fraterno e tão pouco liberal...

Numa outra revista cubana, assim escreveu um comentador, de nome José Steinsleger, segundo o qual o século XX será, no futuro, denominado “o século de Fidel Castro”: “Ejemplo antes que modelo, la experiencia cubana indica que hacer la revolución es difícil, pero factible. Acontecimiento caótico en sus inicios, es curioso que la revolución sea el hecho conservador por excelencia. Caótico porque, al empezar, sus efectos se disparan en múltiples direcciones. Conservador porque sus ideales buscan preservar los valores que consagró la Gran Revolución: libertad, igualdad, fraternidad.” (El siglo de Fidel Castro, Por José Steinsleger, Febrero 28, 2008 - Tricontinental número 158, La Habana, Cuba, 2004).

Apregoar o sonoro lema não é privativo dos ditadores de esquerda. Também aos de direita ele pode servir. Veja-se, por exemplo, o curioso exemplo a seguir. Traduzo do francês:

“Na madrugada de 18 de Julho de 1936 o General Franco, Comandante militar nas Canárias, adere ao Alzamiento (levante) contra o governo de Madrid, ocorrido na tarde do dia anterior. Às 5h15 a Rádio-Tenerife difunde uma mensagem importante, escrita por Franco, indicando as razões do levante que será “uma guerra sem tréguas aos exploradores da política, àqueles que enganam o trabalhador honesto, aos estrangeiros e partidários dos estrangeiros que trabalham, aberta ou ocultamente, para destruir a Espanha”. E promete justiça e igualdade diante da lei; liberdade e fraternidade sem licenciosidade nem tirania; trabalho para todos; justiça social e distribuição equitativa e progressiva das riquezas sem abalar ou pôr em perigo a economia espanhola. Esse texto, que será conhecido como Manifiesto de Las Palmas, conclui com a divisa da Revolução Francesa, com a ordem alterada: Fraternité, Égalité, Liberté.” (André Brissaud, "Franco devient le 'Caudillo'", Historia Hors-série 22, Set.1971, p. 48)

Vemos, assim, que a trilogia serve para tudo e para todos... A mesma ambiguidade, a mesma polivalência, a mesma comodidade para ser aplicada a contextos muito diferentes havia em 1789 e continua havendo hoje. É uma trilogia ambígua, que serve para acobertar crimes políticos dos mais variados tipos.

Eu poderia mostrar, ainda, que existe uma contradição interna na trilogia, por onde ela, além de ambígua e acobertadora de crimes, é contraditória e utópica. Poderia também mostrar que esse caráter contraditório e utópico é reconhecido por alguns autores marxistas e neo-marxistas, que, no entanto, esperam que numa futura evolução do gênero humano sua natureza seja tão modificada que os próprios limites da utopia sejam superados. Mas isso seria estender demasiado este texto.

 

Sobre o autor: Licenciado em História e em Filosofia, doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Portuguesa da História e do Instituto Históricos e Geográfico Brasileiro

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