A precária trégua alcançada em Gaza não deve alimentar ilusões, nem sobre o futuro deste acordo, nem sobre a possibilidade de a paz entre a Rússia e a Ucrânia estar iminente. Por outro lado, existe uma diferença substancial entre os dois conflitos em curso. O acordo de Gaza foi possível, em primeiro lugar, porque havia um vencedor e um vencido, respectivamente Israel e o Hamas; e, em segundo lugar, porque se formou uma ampla coligação informal de Estados árabes muçulmanos decididos a restabelecer a ordem que o Hamas perturbara com o ataque perpetrado contra Israel a 7 de Outubro de 2023. Na Ucrânia, pelo contrário, não só ainda não há um vencedor e um vencido, como também não existe uma ampla coligação de Estados dispostos a isolar a Rússia, que, ao contrário do Hamas, é um país muito vasto e uma potência nuclear. A China, de quem a Rússia depende actualmente, tem todo o interesse em manter as atenções dos Estados Unidos centradas na Europa, o que lhe permite desviar as forças americanas da região Indo-Pacífica e poder assim desferir o golpe mortal contra Taiwan para o qual se vem preparando há anos. O presidente americano gostaria de se retirar da frente europeia para poder aumentar a presença militar nessa área geopolítica; Trump não compreende que aquilo que está em jogo na Ucrânia afecta todo o Ocidente. De facto, se, dentro daquilo a que chamamos Ocidente, a Europa é, em termos económicos, políticos e militares, a irmã mais nova dos Estados Unidos, em termos espirituais e culturais é a mãe, porque as raízes da civilização americana mergulham no património intelectual, religioso e moral europeu. A Ucrânia, que é o antigo reino de Kiev, faz parte, pela sua história e pela vontade política que hoje expressa, da Europa – e não da Rússia moscovita. Abandoná-la seria um gesto de cobardia moral e de miopia política.
Além disso, no seu esforço por encerrar o assunto ucraniano, Trump corre o risco de cometer o mesmo erro que Putin: subestimar não tanto o carácter de Zelenski, um actor que fez da vida o seu palco, mas o espírito de resistência do povo ucraniano, uma nação que em 1932-1933 sofreu o Holodomor – o extermínio pela fome imposto por Estaline, que levou cerca de quatro milhões de pessoas à morte – sem se deixar curvar, e que, entre 1941 e 1960, expressou a resistência militar antissoviética mais combativa da Europa de Leste. Será difícil chegar a um acordo que imponha a este povo condições que ele considere inaceitáveis.
Em suma, estamos perante uma série de nós quase inextricáveis. O presidente Trump desconhece certamente as páginas que Joseph de Maistre (1753-1821) e Juan Donoso Cortés (1809-1853) dedicaram à Rússia, e talvez mesmo as do historiador americano Henry Adams (1838-1918), que identificou o perigo deste país de Leste, definindo-o como uma imensa realidade territorial e humana, difícil de compreender e de governar, que é mais uma força da natureza do que uma nação no sentido ocidental (The Education of Henry Adams. An Autobiography, New York, Modern Library, 1996, pp. 438-439).
Não é claro se o objectivo principal de Trump é aumentar a grandeza dos Estados Unidos ou a do seu próprio «ego», conquistando um prémio já desacreditado, mas ao qual ele parece atribuir grande importância: o Prémio Nobel da Paz. Mas temos de reconhecer que o presidente americano está rodeado por uma equipa de colaboradores capazes de corrigir os seus erros de cálculo, enquanto o presidente russo, como todos os ditadores, está dramaticamente isolado nas suas decisões, porque ninguém ousa contradizê-lo. Trump olha para os louros que pode obter após o seu mandato presidencial; Putin sabe que está condenado a governar até à morte se quiser evitar a morte no final da sua governação. Também por isso, o presidente da Federação Russa parece estar consumido por uma pulsão suicida: Putin mandou assassinar os seus adversários, dentro e fora do país, e está a massacrar centenas de milhares de compatriotas numa das campanhas militares mais fracassadas jamais empreendidas pela Rússia ao longo da sua história. A ofensiva russa de Verão está a chegar ao fim e, como sublinha Marta Serafini no Corriere della Sera de 20 de Outubro, o czar russo não alcançou um único dos resultados anunciados. Potrkrovsk, que está em perigo há mais de um ano, não caiu; e o exército russo conseguiu o controlo das regiões de Dnetsk, Lugansk, Zaporuzhzhia e Kherson, que Putin reivindica. O ditador russo sabe que não pode vencer, mas está disposto a tudo para não perder. É difícil prever os seus movimentos futuros, tal como é difícil prever os movimentos de Trump, que adora improvisações e volte-faces.
O problema é que, noutros tempos, as relações internacionais eram complexas partidas de xadrez entre jogadores experientes, que empenhavam todas as suas capacidades intelectuais no jogo. Hoje, pelo contrário, o palco é dominado por um emaranhado de paixões, que é a principal causa da instabilidade internacional. Robert Kaplan fala de «declínio shakespeariano», referindo-se aos demónios interiores que empurram os líderes políticos para um certo grau de loucura (Il Secolo Fragile. Caos e Potere nel Mondo in Crisi Permanente, Venezia, Marsilio, 2025, p. 100). Acontece que os homens do poder nossos contemporâneos não têm a consciência trágica e a grandeza de alma que caracterizam as personagens de Shakespeare na sua descida à ruína.
Além disso, o teatro isabelino foi substituído por um mundo digital em que cada indivíduo — líder, influencer ou simples espectador — desempenha o seu papel diante de um público invisível, enquanto as redes sociais incentivam e multiplicam o poder expansivo das paixões desordenadas. Tal como nas peças de Shakespeare, as emoções dominam a razão, mas os demónios interiores de Macbeth e Otelo manifestam-se sob a forma de uma dependência social dos algoritmos. A raiva, a vingança, o ódio e o ressentimento tornaram-se os impulsos dominantes de uma psicologia colectiva volátil, que se alimenta do mundo virtual, perante um público planetário.
É neste contexto que vai tendo lugar a queda interior de uma civilização que, tal como as personagens de Shakespeare, é devorada pelos seus próprios demónios. Só que a loucura actual não se restringe ao silêncio de um palácio, autorrepresenta-se diante de um ecrã, qual tragédia global em directo. A psicologia dos indivíduos e das massas escapa àqueles que tentam reconstruir a história de acordo com linhas ideológicas preconcebidas, porque a contemporaneidade já não é governada por ideias, mas por estados de alma colectivos e por um pathos descontrolado. No mundo das paixões, reais e virtuais, todas as ideologias se dissolvem; uma força sobrevive, porém: a força destrutiva do comunismo, que o presidente chinês Xi Jinping relançou em Pequim e que Vladimir Putin traduz numa prática de poder em Moscovo. Realiza-se a profecia de Fátima, e a Igreja Católica, apostólica e romana, com as suas verdades infalíveis de fé e moral, é a derradeira rocha firme no caos contemporâneo. Quando tudo é engolido pelo vórtice do presente e o tempo se transforma uma corrente de acontecimentos desprovidos de direcção, em que tudo é possível e tudo é imprevisível, torna-se necessário proceder a uma reflexão histórica e teológica. Deus pode intervir a qualquer momento e basta um único acto de fidelidade ou de traição de um só homem para mudar o curso dos acontecimentos.
No século v, o general romano Bonifácio, comes Africæ, governador da África romana (c. 422-432 d.C.), traiu a sua fé e o Império, aliando-se aos invasores vândalos (Próspero de Aquitânia, Chronicon, ad annum 429). Santo Agostinho, que o exortava à luta, morreu durante o cerco à cidade de Hipona, meditando sobre o significado da queda do Império Romano, que não se desmoronava só pela força dos bárbaros, mas pela deserção dos seus defensores. E, no entanto, sobre as ruínas desse império nasceria a civilização cristã da Idade Média. A teologia da história de Santo Agostinho, que foi testemunha do declínio do Império Romano, é a única que pode abrir o coração à esperança. Quem, senão Leão XIV, poderá recuperar hoje o seu significado perene?
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