Luiz Solimeo
«Acho que temos de mudar atitudes, antes mesmo de pensarmos em mudar o que a Igreja diz sobre qualquer questão»
A atitude do Cardeal Cupich de conceder ao Senador Dick Durbin (D-Illinois), publicamente favorável ao aborto, o «Lifetime Achievement Award» provocou grandes reacções nos meios católicos, entre elas as declarações desfavoráveis de dez arcebispos e bispos, incluindo dois bispos eméritos.
O arcebispo de Chicago, ao conceder tal honraria, argumenta que o Senador, embora abortista militante, era a favor dos imigrantes e esta era a razão pela qual o honrava publicamente.
Político hábil, o Senador Durbin, vendo a reacção da opinião pública católica, resolveu, por si mesmo, recusar a honraria que lhe seria concedida.[1]
Leão XIV apoia o Cardeal Cupich
Como era natural, muitos esperavam uma palavra do Papa Leão XIV esclarecendo que um bispo não pode conceder honrarias a um político cuja actuação em favor do aborto é publicamente conhecida.
No último dia 30 de Setembro, ao deixar Castel Gandolfo, Leão XIV foi questionado por um jornalista da EWTN sobre a atitude do Cardeal Cupich e a confusão que ela estava a causar. A pergunta e a resposta foram gravadas em vídeo que está a circular amplamente.
Para surpresa de muitos, as palavras do Pontífice foram de apoio ao Cardeal Cupich e não de condenação da sua atitude. Ele usou mesmo uma argumentação semelhante à do Arcebispo de Chicago, que lembra a teoria do falecido Cardeal Bernardin, conhecida como A Túnica Inconsútil. [2]
Essa atitude do Papa está em oposição, ainda que indirectamente, à crítica dos dez arcebispos e bispos americanos.
Aborto e Pena de Morte
Na sua entrevista, Leão XIV evitou referir-se à militância abortista do Senador, preferindo considerar os seus «40 anos de serviço no senado dos Estados Unidos» e ressaltando que «é importante olhar para muitos problemas que estão relacionados com o que é o ensinamento da Igreja.»
Indo mais longe, comparou o aborto com a pena de morte, dizendo: «Se alguém disser que é contra o aborto, mas a favor da pena de morte, então não é realmente pró-vida.» Do mesmo modo, equiparou o apoio ao aborto às restrições contra a imigração ilegal: «Se alguém disser que é contra o aborto, mas concorda com o tratamento desumano dado aos imigrantes nos Estados Unidos, não sei se isso é pró-vida.»
Veremos adiante que estas ligações não têm cabimento.
Finalizou: «São questões muito complexas» e «não sei se alguém tem toda a verdade sobre elas».[3]
A atitude do Papa Leão surpreendeu o próprio político abortista. Durbin «disse ao Jornal NBC, na quarta-feira, que ele ficou «emocionado» com o apoio que recebeu do Papa Leão XIV depois de enfrentar críticas pelo seu vasto suporte ao direito de abortar.» [4]
O Memorandum do Cardeal Ratzinger
No mínimo, causa estranheza que o Papa diga não saber «se alguém tem toda a verdade» sobre importantes questões morais como aborto, pena de morte e restrições à imigração. Deixa a impressão de que se trata de questões abertas, sobre as quais a Igreja nunca se pronunciou no passado. Além disso, bastaria a Lei Natural para saber quem tem «toda a verdade» quanto ao aborto e à pena de morte.
Seja como for, não se pode comparar o aborto procurado, que é intrinsecamente mau, com a pena de morte, cuja legitimidade é atestada pelas Escrituras, pelo ensinamento dos Doutores e pelo Magistério da Igreja. [5]
O sofisma, por sinal, não é novo, tendo já sido empregado em 2004 por alguns bispos americanos, entre os quais o mesmo prelado Blase J. Cupich, que era então o bispo da Cidade Rapid, S.D. Esses prelados colocavam a pena de morte e o aborto em pé de igualdade e daí concluíam que quem fosse a favor da pena de morte cometia o mesmo pecado de quem fosse favorável ao aborto. [6]
Nessa ocasião, o então Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Cardeal Joseph Ratzinger, enviou ao episcopado americano um memorandum desfazendo tal erro. Entre outras coisas, o documento afirmava:
«A Igreja ensina que o aborto ou a eutanásia são pecados graves ... Nem todas as questões morais têm o mesmo peso moral que o aborto e a eutanásia. ... Pode haver uma legítima diversidade de opiniões, mesmo entre os católicos, sobre a guerra e a aplicação da pena de morte, mas não no que diz respeito ao aborto e à eutanásia.» [7]
Mudou a Doutrina da Igreja?
Alguém poderia argumentar que Leão XIV está a seguir o seu antecessor, Francisco, que teria modificado a doutrina católica sobre a pena de morte. Mas, como já ficou dito, a legitimidade dessa pena encontra-se afirmada nas Escrituras, na Tradição e no Magistério perene da Igreja. [8]
A pena de morte é contrária à dignidade humana?
Francisco, ao mudar o texto do Catecismo da Igreja Católica, que na sua edição inicial expunha a doutrina tradicional da Igreja sobre a pena de morte, afirmou que não se pode aplicar a pena máxima a um criminoso porque este não perde a sua dignidade humana. [9]
Porém, ele não faz distinção entre dignidade ontológica, própria à natureza racional do homem e dignidade moral, que depende de ser ou não coerente com a Lei Natural e com a Lei Divina. [10]
É claro que ninguém perde a dignidade ontológica, ou seja, a que é inerente à natureza, por um crime ou pecado, mas pode perder a dignidade moral, como diz Santo Tomás. [11] Com efeito, ninguém é condenado a uma pena justa por causa da dignidade ou da falta dela, mas por acções concretas praticadas contra o bem comum.
Ao confirmar a legitimidade da pena de morte o Papa Pio XII explica que o homem, «por meio de seu crime, privou-se do seu próprio direito à vida.» [12]
«A abordagem da Igreja à comunidade LGBTQ+»
O sub-título acima está numa reportagem de Vatican News, [13] noticiando a entrevista de Leão XIV à jornalista Elise Ann Allen. O texto da entrevista foi publicado em livro com o título León XIV: Ciudadano del mundo, misionero del siglo XXI [Leão XIV: Cidadão do Mundo, Missionário do Século XXI]. [14]
A jornalista perguntou sobre «o tema LGBTQ+», ao que Leão XIV respondeu:
«As pessoas querem que a doutrina da Igreja mude, querem que as atitudes mudem. Acho que precisamos mudar atitudes, antes mesmo de pensarmos em mudar o que a Igreja diz sobre qualquer questão. Parece-me muito improvável, certamente num futuro próximo, que o ensinamento da Igreja mude em termos do que ensina sobre sexualidade e casamento.» [15]
Estas palavras da sua entrevista têm causado muito escândalo, pois se a moral sexual da Igreja não mudará «num futuro próximo», isso sugere que ela poderá mudar mais tarde. Ou seja, que ela é mutável ao sabor dos tempos e das circunstâncias.
Ora, a moral da Igreja não pode mudar porque tem por base a Lei Natural e a Lei Divina, que não mudam. Não é uma questão de tempo, mas de substância: a moral não muda porque Deus não muda.
Examinemos as palavras empregadas pelo Papa:
- «Muito improvável» - O que é improvável, mesmo muito improvável, não é impossível. Portanto, não é impossível que a doutrina moral da Igreja mude.
- «Certamente num futuro próximo» - A «improbabilidade» deve-se apenas ao tempo, não à substância. Portanto, quer dizer que ela pode mudar, embora não proximamente.
- «Que a doutrina da Igreja mude» - A mudança será da própria doutrina da Igreja.
- «Em termos do que ensina sobre sexualidade e casamento» - A mudança será na doutrina sobre sexualidade e matrimónio.
Em termos directos: Certamente, num futuro não imediato, é provável que a doutrina da Igreja venha a mudar no que ensina sobre sexualidade e matrimónio.
Pode um Papa Mudar a Doutrina da Igreja?
O grande teólogo jesuíta espanhol Fr. José de Aldama deixa claro que quando «certa doutrina é constantemente e por muito tempo ensinada em toda a Igreja ... a sua infalibilidade deve ser absolutamente admitida; caso contrário, levaria a Igreja ao erro.» [16]
Como vimos, este é precisamente o caso do aborto e da pena de morte.
Portanto, um Papa não tem poder para mudar uma doutrina já consolidada na Igreja pois, como ensina o Concílio Vaticano I, ele recebe a assistência do Espírito Santo, não para apresentar «uma nova doutrina», mas para guardar o depósito da fé.[17]
Tampouco se pode alegar que não se trataria de uma modificação da doutrina sobre a legitimidade da pena de morte (ou sobre o aborto) mas sim de um «desenvolvimento dessa doutrina». Isto seria negar o princípio de contradição pois se a doutrina afirma que a pena de morte é legítima, como pode o «desenvolvimento» dessa doutrina afirmar o oposto?
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Notas
[1] Valentina di Donato and Madalaine Elhabbal, “Pope Leo XIV Wades Into Durbin Debate,” National Catholic Register, Sept. 30, 2025, https://www.ncregister.com/cna/pope-leo-xiv-comments-on-cardinal-cupich-s-plan-to-bestow-award-on-illinois-senator; Daniel Payne/CAN, “Durbin Declines Chicago Archdiocese Award After Global Backlash Over Pro-Abortion Views,” National Catholic Register, Sept. 30, 2025, https://www.ncregister.com/cna/durbin-declines-chicago-archdiocese-award-after-global-backlash-over-pro-abortion-views.
[2] Joseph Bernardin, “A Consistent Ethic of Life: Continuing the Dialogue,” Série de aulas de William Wade, St. Louis University, Mar. 11, 1984, https://www.stmarych.com/documents/2015/10/Cardinal%20Bernadin%20SEAMLESS%20GARMENT.pdf. [4] Veja a arte de Valentina di Donato / Madalaine Elhabbal. Cit.
[3] Vídeo inserido no artigo citado acima de Valentina di Donato/ Madalaine Elhabbal e no Youtube no site de EWTN, https://www.youtube.com/watch?v=IIF18ZEyKA0.
[4] Frank Thorp V, “Sen. Dick Durbin Says He’s ‘Overwhelmed’ After Pope Leo Defended Him From Abortion-Related Criticism,”NBCNews.com, Oct. 1, 2025, https://www.nbcnews.com/politics/congress/sen-dick-durbin-says-overwhelmed-pope-leo-defended-abortion-related-cr-rcna234990.
[5] Veja o estudo erudito de Avery Cardinal Dulles, “Catholicism & Capital Punishment,” First Things, Apr. 1, 2001, https://firstthings.com/catholicism-capital-punishment/. Veja também John A. Hardon, S.J., “The Legitimacy of Capital Punishment,” CatholicCulture.org, https://www.catholicculture.org/culture/library/view.cfm?recnum=6871, accessed October 2024; Edward Feser and Joseph M. Bessette, By Man Shall His Blood Be Shed: A Catholic Defense of Capital Punishment (San Francisco, Ignatius Press, 2017), especialmente o capítulo 2: “Church Teaching and Capital Punishment,” 97–211, https://archive.org/details/bymanshallhisblo0000fese/mode/2up.
[6] Blase J. Cupich, “Rejecting the Death Penalty Advances the Culture of Life,” America Magazine, Jan. 29, 2007, https://www.americamagazine.org/faith/2007/01/29/rejecting-death-penalty-advances-culture-life/.
[7] Cardinal Joseph Ratzinger, “Worthiness to Receive Holy Communion: General Principles,” nos. 2–3, EWTN.com, https://www.ewtn.com/catholicism/library/worthiness-to-receive-holy-communion-general-principles-2153.
[8] Vide Ratzinger, “Worthiness,” no. 5.
[9] “New Revision of Number 2267 of the Catechism of the Catholic Church on the Death Penalty – Rescriptum ‘ex audientia SS.MI,” https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20180801_catechismo-penadimorte_en.html.
[10] Vide Rom. 2:15, Exod. 20.
[11] Vide St. Thomas Aquinas, Summa theologiae, II–II, q. 64, a. 2, c., https://www.newadvent.org/summa/3064.htm#article2.
[12] Pius XII, “A los participantes en el I Congreso Internacional de Histopatología del Sistema Nervoso,” Sept. 14, 1952, no. 28. https://www.vaticannews.va/en/pope/news/2025-09/pope-leo-sees-role-as-building-bridges-avoiding-polarization.html.
[13] Salvatore Cernuzio, “Pope Leo Sees Role as One of Building Bridges, Avoiding Polarization,” VaticanNews.com, Sept. 18, 2025 https://www.vaticannews.va/en/pope/news/2025-09/pope-leo-sees-role-as-building-bridges-avoiding-polarization.html.
[14] Elise Ann Allen, León XIV: Ciudadano del mundo, misionero del siglo XXI (Edição Kindle em Espanhol). Até ao momento em que escrevemos (10/6/25), só se encontra o texto correspondente em espanhol e em formato Kindle. A edição inglesa está prometida para o próximo ano. Transcrevemos a resposta do Papa americano sobre a questão homossexual directamente da edição Kindle do livro.
[15] “Pope Leo XIV on LGBTQ+ - Exclusive Interview,” Crux Now Media, YouTube.com, Sept. 18, 2025, 2:09—2:27, accessed Oct. 10, 2025. (Nossa transcrição)
[16] Josepho A. de Aldama, S.J., “Mariologia seu de Matre Redemptoris,” in Sacrae theologiae summa (Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1961), 3:418n16, https://archive.org/details/vol-iii-sacra-summa-theologiae/page/n220/mode/1up.
[17] Denz. 1836 (“Pastor aeternus”), Heinrich Denzinger, The Sources of Catholic Dogma, trans. Roy J. Deferrari (St. Louis: B. Herder Book Co., 1957), 456, https://archive.org/details/sourcesofcatholi00denz/page/455/mode/1up.