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Dom Pedro II: Poder e Autoridade - No Bicentenário do seu nascimento (1825-2025)

16 de Outubro de 2025

Ibsen Noronha

Ibsen Noronha

Dom Pedro II: Poder e Autoridade - No Bicentenário do seu nascimento (1825-2025)

A 2 de Dezembro de 1825, no Paço de São Cristóvão, no Rio de Janeiro nasceu Dom Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga Habsburgo Bragança, herdeiro do trono do Império do Brasil.

Duzentos anos volvidos, as homenagens vão sendo organizadas aqui e alhures, discreta e serenamente, para relembrar a vida do Chefe de Estado que serviu o seu povo por mais de meio século e tornou o Império do Brasil respeitado e pujante no concerto das Nações.

Situação sui generis na América Latina foi a de Dom Pedro II. Imperador em meio a presidentes, em regra caudilhos, soube conduzir a coisa pública suscitando a admiração e o respeito. Procurou – e parece-me que conseguiu – gerar uma elite que pudesse cumprir a sua missão nos mais distintos campos da vida cultural do Brasil.

Asseverou o Embaixador Synesio Sampaio Goes Filho, antigo embaixador do Brasil em Portugal, no seu instigante ensaio sobre a formação das fronteiras brasileiras:

O Império soube recrutar para suas tarefas-chave vários dentre os mais sagazes da elite dirigente. Não importava a filiação partidária, uma vez que, em matéria de política externa conseguiu-se, sob a batuta de Dom Pedro II, uma notável unidade de doutrina e de ação, admirada até pelos seus naturais adversários, os historiadores hispano-americanos1.

***

O Imperador agraciou, em 1867, Machado de Assis com a Imperial Ordem da Rosa, no grau de cavaleiro, por serviços prestados às letras brasileiras. Tinha apenas 28 anos o escritor e não publicara ainda qualquer romance. Impressiona a capacidade de discernir os talentos do Imperador. Pedro Américo, Victor Meirelles e Carlos Gomes2 confirmam o discernimento imperial.

Um antigo conselheiro de Estado e prócer da República afirmou, desencantado, na segunda década do século XX: «o parlamento no Império era uma escola de estadistas, o Congresso da República tornou-se numa praça de negócios3»… Tal certifica Heytor Lyra, que na sua História de Dom Pedro II pode afirmar:

Nunca se viu antes, nem se veria depois, tal número de estadistas notáveis, talentos pelo saber, pela argúcia, pela integridade de caráter, pelo desinteresse pessoal, pelo amor à pátria, pela rigidez dos costumes, pela austeridade de suas vidas privadas4.

Sobre o Imperador e a sua constante preocupação com a actividade proba das elites é bastante conhecido o texto de Monteiro Lobato de Dezembro de 1918: A luz do Baile. Não resisto, contudo, em citá-lo, apesar de muito conhecido, pois faz jus ao nosso homenageado e saiu de pena insuspeitíssima:

O fato de existir na cúspide da sociedade um símbolo vivo e ativo da Honestidade, do Equilíbrio, da Moderação, da Honra e do Dever, bastava para inocular no país em formação o vírus das melhores virtudes cívicas. O juiz era honesto, senão por injunções da própria consciência, pela presença da Honestidade no trono. O político visava o bem público, se não por determinismo de virtudes pessoais, pela influência catalítica da virtude imperial. As minorias respiravam, a oposição possibilizava-se: o chefe permanente das oposições estava no trono. A justiça era um fato: havia no trono um juiz supremo e incorruptível. O peculatário, o defraldador, o político negocista, o juiz venal, o soldado covarde, o funcionário relapso, o mau cidadão enfim, e mau por força de pendores congeniais, passava, muitas vezes, a vida inteira sem incidir num só deslize. A natureza o propelia ao crime, ao abuso, à extorsão, à violência, à iniquidade – mas sofreava as rédeas aos maus instintos a simples presença da Equidade e da Justiça no trono. Ignorávamos isso na Monarquia.

Foi preciso que viesse a República, e que alijasse do trono a força catalítica, para patentear-se bem claro o curioso fenômeno. A mesma gente, o mesmo juiz, o mesmo político, o mesmo soldado, o mesmo funcionário até 15 de novembro honesto, bem intencionado, bravo e cumpridor dos deveres, percebendo, na ausência do imperial freio, ordem de soltura, desaçamaram a alcatéia dos maus instintos mantidos em quarentena. Daí, o contraste dia a dia mais frisante entre a vida nacional sob Pedro II e a vida nacional sob qualquer das boas intenções quadrienais, que se revezam na curul republicana. Pedro II era a luz do baile. Muita harmonia, respeito às damas, polidez de maneiras, jóias de arte sobre os consolos, dando ao conjunto uma impressão genérica de apuradíssima cultura social. Extingue-se a luz. As senhoras sentem-se logo apalpadas, trocam-se tabefes, ouvem-se palavreados de tarimba, desaparecem as jóias… Como, se era a mesma gente! Sim, era a mesma gente. Mas gente em formação, com virtudes cívicas e morais em início de cristalização. Mais um século de luz acesa, mais um século de catálise imperial, e o processo cristalisatório se operaria completo. O animal, domesticado de vez, dispensaria o açamo. Consolidar-se-iam os costumes; enfibrar-se-ia o caráter. E do mau material humano com que nos formamos sairia, pela criação de uma segunda natureza, um povo capaz de ombrear-se com os mais apurados em cultura. Para esta obra moderadora, organizadora, cristalizadora, ninguém mais capaz do que Pedro II; nenhuma forma de governo melhor do que sua monarquia5.

***

Um aspecto da existência multifacetada do Imperador Dom Pedro II, merece realce: o sentido da honra na formação das elites! Nesta tarde, contudo, tratarei brevemente e tão-somente por meio de pinceladas, de um aspecto da vida do Imperador Magnânimo: o exercício do poder e a sua autoridade.

As fontes da época são muito eloquentes. Falam de um período histórico marcado pelo liberalismo, que promovera a ruptura com o Antigo Regime; mas apresentam também persistências das concepções tradicionais. A Família, por exemplo, preservava algo de sagrado que, pode-se afiançar, ainda hoje persiste na mentalidade luso-brasileira. Assim também é no que respeita às concepções de poder. Apesar da ruptura revolucionária promovida pelo ideário da Revolução Francesa, permanecia a ideia providencial em torno do poder, ou seja, um elemento de transcendência.

O príncipe Dom Pedro, pelo acto de abdicação do Pai, em 1831, torna-se Dom Pedro II. O documento assinado pelo primeiro Imperador permite-nos ler: Usando do direito que a Constituição me concede, declaro que hei muito voluntariamente abdicado na pessoa de meu amado e prezado filho o Senhor D. Pedro de Alcântara.

Logo, aos cinco anos acordou, a 7 de Abril de 1831, com a coroa Imperial ao lado de sua cama. Aclamado dois dias depois perante a multidão, foi prontamente acolhido pelos brasileiros como o órfão coroado. Dom Pedro II tinha ainda junto de si as três irmãs mais velhas: D. Januária, D. Paula e D. Francisca. Eram a companhia durante a sua infância no Paço de São Cristóvão. E foram três as personalidades encarregadas por Dom Pedro I dos cuidados com o seu filho: José Bonifácio, nomeado como tutor, Mariana Carlota de Verna Magalhães Coutinho (Dadama)6, condessa de Belmonte, aia do pequeno Imperador, e Rafael7, um antigo escravo, então liberto, que durante toda a sua longa vida olhou pelo Imperador.

A formação de Dom Pedro II foi esmerada8 e durante nove anos se preparou para assumir os poderes Executivo e Moderador do Império do Brasil. Como é sobejamente sabido os nove anos do período regencial foram uma antevisão da república no Brasil9: a instabilidade política e o exercício dos poderes deram o tom na década de trinta no Brasil de Oitocentos.

Em Portugal a situação era ainda mais instável nesta quadra e, após a guerra civil e a morte do Dom Pedro, a 18 de Setembro de 1834, foi declarada a maioridade da rainha Dona Maria II (então com 15 anos), dispensando da idade constitucional.

No Brasil as discussões parlamentares sobre a dispensa na idade para o Imperador Dom Pedro II deram-se em Julho de 1840. Debates de grande nível intelectual em que a boa dialética discutia da constitucionalidade da idade prevista no art. 121 da Constituição de 1824. Tendo em vista a maleabilidade da Constituição Imperial era autorizada tal interpretação. Após os debates e sendo quase unânime o desejo de ver Dom Pedro II ser ungido e coroado, assumindo as suas responsabilidades no exercício do poder, foi preparada uma proclamação:

A Assembleia legislativa do Brasil, reconhecendo o feliz desenvolvimento intelectual de S.M.I., o Senhor Dom Pedro II, com que a Providência Divina favoreceu o Império de Santa Cruz; reconhecendo igualmente os males de governos excepcionais, e presenciando o desejo unânime do povo desta capital,… houve por bem, por tão ponderosos motivos, declará-lo em maioridade, para o efeito de entrar imediatamente no pleno exercício destes poderes…

A 23 de Julho de 1840 o Imperador, no Paço do Senado, em sessão presidida pelo Marquês de Paranaguá, prestou o juramento. Leiamos o auto:

Saibão quantos este publico documento virem, que, no anno do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e quarenta, aos vinte e três dias do mês de Julho, nesta mui leal e heroica cidade do Rio de Janeiro, no Paço do Senado, S.M.I. o Senhor Dom Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francico Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga segundo Imperador e Defensor perpétuo do Brasil, filho legítimo e primeiro varão existente do falecido Senhor Dom Pedro I e da falecida Senhora Dona Maria Leopoldina, lhe foi apresentado pelo Exmo. Presidente o Missal em que o mesmo Augusto Senhor impôs a mão direita, pronunciou em voz alta o seguinte juramento: Juro manter a religião Católica Apostólica Romana, a integridade e indivisibilidade do Império, observar e fazer observar a Constituição política e mais leis do Império, e prover o bem geral do Brasil, quanto em mim couber10.

A 18 de Julho de 1841 Dom Pedro II foi ungido e coroado, numa cerimônia carregada de tradições, distintas das que ocorriam em Portugal. Para a coroação vestiu uma túnica branca que pertencera ao seu avô, Francisco II, último Imperador do Sacro Império. Os regalia, símbolos do poder, expressavam a força da tradição em meio ao constitucionalismo liberal: a coroa, a espada, o cetro, a orbe e a mão da Justiça, representavam a concepção tradicional do poder, fundado no transcendente; a Constituição, por sua vez, exibia a ruptura. Soberania popular e separação dos poderes, por exemplo, eram elucubrações racionalistas que afirmavam um poder imanentista.

Eram estas as concepções de poder que se encontravam na pessoa de Dom Pedro II, que levava no sangue séculos de História, e trazia ao instável século XIX o perfume das tradições das velhas dinastias da Cristandade.

A forma de governo monárquica na América de então discrepava frontalmente da doutrina Monroe, pois tinha suas raízes profundas no mundo europeu. O exercício paternal do poder – aquele de que foi pródigo Dom Pedro II – não era visto no Novo Mundo, repleto de repúblicas igualitárias e individualistas, como o que mais favorecesse as percepções e gostos revolucionários. Recordava muito a sociedade hierárquica e sacral do Antigo Regime.

Dom Pedro II, ao longo de meio século soube exercer os poderes com sabedoria, criando assim a grande Família brasileira. Favorecendo um parlamentarismo à brasileira, com monarca paternal. As rebeliões foram vencidas e o Império prosperou. A alternância parlamentar foi uma constante e o parlamento produziu a escola de estadistas de que falava Ruy Barbosa e que Machado de Assis descreveu com a sua pena privilegiada em O velho Senado.

É ao Segundo Reinado que se deve a abolição da Escravidão. O processo legislativo foi sábio e modelar: Em 1850 houve a abolição do Tráfico – em 1871 a chamada Lei do Ventre Livre – em 1885 a Lei Sexagenária e em 1888 a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, recebendo do Papa Leão XIII a grande honra da Rosa de Ouro. Repito! Foi um processo legislativo sábio e modelar. A república americana contemporaneamente sofreu os males da Guerra Civil e um mar de sangue correu pela América do Norte. Na abertura anual do Parlamento Dom Pedro II insistia, através da famosa Fala do Trono, na necessidade do empenho legislativo em prol da liberdade dos cativos. Obra de sabedoria, foi louvada pelo Embaixador americano Rudolph Partridge quando o Senado aprovou a Lei do Ventre Livre. Verificada pela votação a vitória do Visconde do Rio Branco, que defendera a aprovação da lei, o povo que enchia as galerias irrompeu em manifestações ao grande estadista, lançando-lhe sobre a cabeça braçadas e braçadas de flores. Terminada a sessão, o embaixador, desceu ao recinto para felicitar o presidente do Conselho e os senadores que haviam votado o projeto. Colhendo algumas flores, das que o povo atirara, declarou: “Vou mandar estas flores ao meu país, para mostrar como aqui se fez, deste modo, uma lei que lá custou tanto sangue!

Pode-se afirmar com convicção que o sistema de governo no Brasil do Segundo Reinado se aperfeiçoou e tornou-se no chamado governo misto, considerado o melhor por uma plêiade de pensadores ao longo da História do pensamento jurídico-político. Tínhamos uma Monarquia temperada por uma Aristocracia, com elementos de uma Democracia orgânica – dir-se-ia um sistema autenticamente brasileiro que não rompeu com as tradições luso-brasileiras.

Dom Pedro II, ao longo de meio século soube exercer os poderes com sabedoria, favorecendo o desenvolvimento político-social, gerando a grande Família brasileira.

Mas exerceu sobretudo a sua Autoridade, Autoridade que é mais que um conselho e menos que um comando; é um conselho que não pode ser ignorado! Se impõe pelas virtudes da Prudência e da Sabedoria.

Dom Pedro II regeu o Império, sobretudo, pela Auctoritas11. É sobre a Família, Celula mater da sociedade – e não o indivíduo como afirmou o individualismo liberal revolucionário –, onde a autoridade é exercida naturalmente, ou seja, é explicitamente de ordem natural. A Auctoritas é fruto da tradição tanto nas Famílias, quanto na primeira Família de uma Monarquia. A Auctoritas alcança as origens. Nasce dos mores maiorum. A Auctoritas é eminentemente moral.

Suspeito que prestígio do Imperado Dom Pedro II esteja em ter sido o Chefe da grande Família brasileira durante meio século e ter transmitido, de maneira um tanto impressionista, por meio do seu sábio exercício da autoridade, uma ideia que ainda hoje, duzentos anos volvidos do seu nascimento, persiste no mais profundo da alma brasileira: a ideia de que o Brasil tem uma missão a cumprir no concerto das Nações.

 

Notas:

  1. Navegantes, Bandeirantes, Diplomatas – Aspectos da Descoberta do Continente, da penetração do território brasileiro extra-Tordesilhas e do estabelecimento das fronteiras da Amazônia, Brasília, 1991, p. 141.
  2. Pedro Américo (1843-1905) foi pintor histórico; Victor Meirelles ( 1832-1903) foi um dos pintores preferidos do Imperador, sendo beneficiado pelo mecenato de Sua Magestade; Carlos Gomes (1836-1896) foi o primeiro compositor brasileiro a ter suas obras apresentadas no Teatro alla Scala de Milão. A república ofereceu a Carlos Gomes uma vultosa quantia para que escrevesse o novo hino nacional, mas o maestro declinou da oferta em gesto de respeito ao monarca destronado, seu constante protetor e amigo.
  3. RUI BARBOSA, Obras Completas, Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1919, v. 46, t. 1, p. 21.
  4. Cfr. p. 37.
  5. Cfr. o texto completo in Revista do Brasil – publicação mensal de scincias, letras e artes, São Paulo, nº 36, Ano III, vol. 9, Dezembro de 1918, pp. 387-391. Monteiro Lobato era o director da Revista.
  6. A condessa de Belmonte afirmou no seu Pequeno Cathecismo Histórico, publicado em 1830: Hum Soberano verdadeiramente Christão há de infalivelmente fazer a felicidade dos Povos que lhe forem sujeitos, sendo a base do Seu Throno as Virtudes principaes da Religião a Justiça e a Caridade.
  7. Rafael era conhecido com o Anjo Negro, era militar veterano da Guerra Cisplatina e foi fidelíssimo e dedicado protector de Dom Pedro II, tendo acompanhado desde a infância, sendo verdadeira figura paterna para o Imperador. A sua relação era tão forte com o monarca, que o acompanhava em diversas viagens e o Imperador o ensinou a ler. Rafael morreu em 1889 de infarto fulminante, aos 98 anos, ao saber da queda da Monarquia. Morreu amaldiçoando os algozes do seu «menino». Vide Múcio Scoevola Teixeira, O Negro da Quinta Imperal, Rio de Janeiro, 1927.
  8. Teve, por exemplo, como Mestre de Esgrima Luiz Alves de Lima e Silva, futuro Duque de Caxias.
  9. Não posso pensar em república no Brasil sem recordar a frase de Roberto Campos: Res publica no Brasil e cosanostra.
  10. Cfr. A Declaração da Maioridade de Sua Magestade (sic) Imperial o Senhor D. Pedro II, desde o momento em que essa idea foi aventada no coro legislativo até o acto de sua realização, Rio de Janeiro, 1840, pp. 113-114.
  11. A força da Auctoritas é mais do que um conselho, e menos que um comando. Trata-se de um conselho que não pode ser ignorado.
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